São cinco para as três. Estás a chegar. Já oiço ou teus passos escada acima até ao quinto andar, o andar em que te espero. Não gostas de elevadores, nunca gostaste. Dou um jeito ao cabelo que teima em desalinhar, quero estar bonita para ti. Quero ver o teu sorriso grande, luminoso ao entrares com o livro na mão. Aquele que está na última prateleira da estante do escritório e que nunca cheguei a ler. Faço questão que o tragas.
O cabelo desalinha. Tu entras. Estás bonita, estás mais bonita hoje é aquilo que me sabes dizer sempre que entras. Os teus olhos brilham. Tu amas-me tanto. Alguma vez te amei assim?
Apetece-me chorar, apetece-me quebrar estas grilhetas que me prendem a vida, que me afastam de nós. Hoje quero abraçar-te mais que nunca, quero beijar-te, fazer amor contigo. Dá-me a tua mão, toca-me. Não reconheces já o meu corpo?
O meu corpo seco.
És linda.
O meu corpo a apodrecer.
És linda.
O meu corpo em pedaços a ser só resquícios de mim.
És linda
Alguma vez te fiz sentir amado?
Pousa o livro na mesa-de-cabeceira, deixa-o estar aí foi a única coisa que te disse desde que entraste com o livro na mão até a hemorragia começar e a minha boca ser só sangue. Corres e gritas por ajuda.
Não vás, beija-me. Fica comigo, não deixes que te obriguem a sair. Gritas, esfolas-te por ajuda. Não vás, marido meu. Fica, que espeta-se-me no peito a tua ausência.
A enfermeira,
o médico. Tu sabes que eu não vou aguentar outra operação. Diz-lhes. Diz-lhes que me amas, diz-lhes que sou a tua mulher, a mãe do teu filho. Diz-lhes que eu não vou aguentar outra operação. Não deixes que te afastem, tenho tanto para te dizer ainda, mas o sangue impede-me de falar, enrola-se nas palavras.
Marido, penteei-me para ti.
E o sangue jorra em golfadas gritantes. E a porta fecha-se. Estás do outro lado. Não chores.
Lentamente sinto a anestesia a surtir efeito. Sei que me restam apenas alguns instantes, breves minutos para adormecer até não mais acordar. E, no entanto, luto ainda para que me oiças do outro lado da porta. Profiro sangue manchado de palavras. Marido meu.
Amo-te tanto, marido meu. Foi o que ficou por dizer.
Isso, e o livro na mesa intocável.
Quantos degraus para a eternidade?
Cinco andares de elevador.
Raquel