sexta-feira, 27 de julho de 2007

Cofre

E ainda assim havia tempo.

Dentro da mala, na carteira, como um cofre: havia tempo.
O tempo concreto de te dizer que sempre fizeste todo o sentido. Que as muralhas construídas existem ainda, mesmo que vás. Que as palavras ficaram como segredos na memória. E que as lembranças não foram com a maré. Tu não te desvaneces em mim como as lágrimas de sal na minha pele. Farás sempre todo o sentido.

E ainda assim havia tempo.
Dentro de nós, como um cofre: havia tempo.
E algo mais.
Raquel

terça-feira, 17 de julho de 2007

Caem como setas a meus pés

Os dias.
Caem como setas a meus pés.
E fica espetado no meu corpo o desejo de instantes a sós, porque a solidão me faz falta.

E falha a coragem de um grito,
Quando a voz rebenta por dentro no sufoco de calar os dias que caem – bem longe.

A sós.
Raquel

sábado, 7 de julho de 2007

Encostada ao Tanque, ao Lado da Porta

Correntes de lava no quintal e pétalas de papoila pisadas por pés de prata polida no chão duro de pedra.
E sopra o vento, assobiando de desgosto na tarde que cai.
Do portão para dentro, a existência é o lençol branco estendido no cordão gasto de muitos lençóis – a existência paira no cordão levantado para cima pelo pau alto de levantar lençóis no ar, onde o vento sopra diferente.
No tanque vazio, aquecido pelo sol que se põe, dorme o gato silencioso no momento do sono a roçar a saudade – dorme o gato preto de manchas brancas encolhido no ronronar do tanque de pedra.
E sopra o vento, assobiando de tédio na tarde que cai.
Ao lado da nespereira em flor, traços a tinta de tijolo desenham brincadeiras no chão em jogos de saltos e tranças compridas – há sorrisos pintados no chão do quintal.
A existência é o gato branco de manchas pretas a despertar dentro do tanque de pedra. No tanque seco e arrefecido do sol que se põe na imponência da noite – espreguiça-se o gato na fome.
O lençol bordado à pressa, estendido no cordão velho de outros dias, esvoaça lá em cima, auxiliado pelo pau alto de levantar lençóis no ar – porque o vento o envolve, enleia-se o pano branco com renda branca no cordão de sempre.
Há um canteiro com flores logo à entrada.
E uma bicicleta de passeios por caminhos de ferrugem e pó – encostada ao tanque, ao lado da porta da cozinha. A bicicleta ao lado da porta pequena de madeira colorida por azul céu.
E sopra o vento, assobiando de frio na noite sem estrelas.
Do portão para dentro brotam papoilas entre as fissuras da pedra do chão do quintal, onde o gato desliza.
Nada mais se impõe.
Só correntes de lava e pétalas de papoila pisadas pelos teus pés de prata polida no chão duro de pedra do meu quintal.
Só isso me faz frente.
Raquel

terça-feira, 3 de julho de 2007

Corres

Corres.
Eu sei que tu corres.
O som do teu movimento é o ruído pesado dos tacões altos de verniz na madeira oca e moribunda. Como uma ruptura no silêncio abre-se o chão a cada passo teu – através do peso da tua existência toda apoiada nos teus sapatos ocos na madeira de verniz.

Corres.
Eu sei que tu corres porque eu vejo os teus cabelos desenharem figuras geométricas no ar à velocidade do pássaro que desliza agora à frente dos meus olhos. Abrem-se horizontes quando os teus cabelos desenham o pássaro que desliza à velocidade da geometria no ar.

Corres porque o chão trepida por baixo à tua passagem e a respiração é o motor na sequência dos teus movimentos. Mas as nuvens, lá fora, hão-de bloquear-te a saída: aqueles braços não chegam esta noite. O tempo cingiu-se à factualidade do tempo correr enérgico sobre ti.

Corres para os braços partidos.
Partidos pelo peso da geometria da vida.
Da vida existir à velocidade do pássaro moribundo que voou.
Voou no instante de pousar sobre os meus olhos.

Corres – para os braços partidos que não chegam esta noite.
Raquel