sexta-feira, 6 de abril de 2007

Alma de Sabão

Era Julho. O sol ardia os olhos – inflamava. O ar era feito de ondas de sol, correntes de calor: bafos quentes. Pegaste no balde preto de plástico que tinhas junto ao cão, no quintal. O cão deitado à sombra – inerte. O balde cheio de água, à sombra, com margaridas brancas. Um ramo enorme de margaridas brancas atadas com cordão. Deste-me um pano já cansado do caminho e detergente, que segurei religiosamente nas minhas mãos. Nas minhas mãos pequenas. Ao sairmos fechaste o portão cinzento com força, com barulho – não fosse o cão sair. Descemos a rua. Podíamos descer a rua de olhos fechados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e leva-nos embaladas. Assim que passamos o portão de ferro chegamos. Eu passei o portão de ferro: cheguei. O porteiro não se vê mas sente-se. Peço-lhe licença para entrar. Corro. Corro sempre em direcção àquilo que conheço – sei exactamente o sítio para onde vamos e o que vamos fazer. Corro como quem brinca e vou feliz. Chego primeiro, vens mais atrás. Caminhas no teu passo de mulher que trabalha tanto. Olho para ti ao longe e grito-te a dizer que cheguei, que cheguei primeiro, que cheguei antes de ti. Sorris. Olho para ti a aproximares-te: tens rugas e és bonita. Pousas o balde no chão e pedes-me para ir buscar água em baldes pequenos, outrora de tinta, que estão à entrada, junto ao portão. Eu sinto-me importante porque me sinto útil e vou. A água na torneira corre enérgica, ruidosa ao cair no balde. Balde que vai meio cheio. Já tinhas tirado as flores velhas e a água suja, quente. Molhas o pano na água que te trouxe, pões sabão – há bolhas de sabão no ar por um instante – e começas a limpar. Esqueces-te sempre do essencial para mim, por isso é que, enquanto preparas as margaridas brancas e as distribuis simetricamente, eu agarro no pano e acabo o trabalho. Limpo a imagem de Jesus na cruz até brilhar e dou-lhe um beijo. Parto o caule de uma das margaridas até ficar bem curto, bem pequeno, até a margarida ser só pétalas brancas e prendo-a junto à cabeça tombada de Jesus na cruz. Depois limpo a fotografia do avô e dou-lhe um beijo. Para mim é o mais importante – esqueces-te sempre do mais importante. Como retoque final enches o balde preto de plástico com água que lanças na campa branca do avô. Enches o balde de plástico preto com água que lanças na campa modesta do pai dos teus filhos. Enches o preto e plástico balde com água que lanças na campa eterna do teu marido. Colocas o detergente – sabão – e o pano no balde. Sou eu quem o leva agora para cima. Sacodes os pés, bates os pés e eu imito-te. Ao sair do portão sorrio ao porteiro que não se vê, como quem agradece a estadia. E sigo. Vens mais atrás. Olho para ti e és uma mancha escura na claridade. Subimos a rua. Podiamos subir a rua de olhos vendados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e empurra-nos. Abriste o teu portão cinzento com barulho – força – e o cão saiu. Pousei o balde no quintal. Era hora do lanche.
E este foi só mais um dia entre muitos dias iguais a este. Dias em que tu, já cansada do caminho, desces a rua e levas o balde, o pano e as flores contigo. Mas neste dia era Julho. Era Julho no seu esplendor: o sol ardia em chamas nos olhos. O ar era feito de ondas de calor, correntes de sol – bafos quentes. E eu ia contigo.
Raquel

1 comentário:

Anónimo disse...

demorei demasiado tempo a comentar este texto... digo demasiado pq este texto merecia um comentario assim que o li, é daqueles textos que me tocam, tal como o dos platanos, este toca me profudamente. o detalhe com que descreves aquele momento é fantastico...e mais uma vez deixas-me com um aperto no peito ao ler um dos teus textos.

A esta altura ja te consigo ouvir a resmungar: "Afinal tanto tempo... e faz me este comentario triste". Se queres outro comentario preenche o papel... =P