quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Alma de Sabão

«Era Julho. O sol ardia os olhos – inflamava. O ar era feito de ondas de sol, correntes de calor: bafos quentes. Pegaste no balde preto de plástico que tinhas junto ao cão, no quintal. O cão deitado à sombra – inerte. O balde cheio de água, à sombra, com margaridas brancas. Um ramo enorme de margaridas brancas atadas com cordão. Deste-me um pano já cansado do caminho e detergente, que segurei religiosamente nas minhas mãos. Nas minhas mãos pequenas. Ao sairmos fechaste o portão cinzento com força, com barulho – não fosse o cão sair. Descemos a rua. Podíamos descer a rua de olhos fechados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e leva-nos embaladas. Assim que passamos o portão de ferro chegamos. Eu passei o portão de ferro: cheguei. O porteiro não se vê mas sente-se. Peço-lhe licença para entrar. Corro. Corro sempre em direcção àquilo que conheço – sei exactamente o sítio para onde vamos e o que vamos fazer. Corro como quem brinca e vou feliz. Chego primeiro, vens mais atrás. Caminhas no teu passo de mulher que trabalha tanto. Olho para ti ao longe e grito-te a dizer que cheguei, que cheguei primeiro, que cheguei antes de ti. Sorris. Olho para ti a aproximares-te: tens rugas e és bonita. Pousas o balde no chão e pedes-me para ir buscar água em baldes pequenos, outrora de tinta, que estão à entrada, junto ao portão. Eu sinto-me importante porque me sinto útil e vou. A água na torneira corre enérgica, ruidosa ao cair no balde. Balde que vai meio cheio. Já tinhas tirado as flores velhas e a água suja, quente. Molhas o pano na água que te trouxe, pões sabão – há bolhas de sabão no ar por um instante – e começas a limpar. Esqueces-te sempre do essencial para mim, por isso é que, enquanto preparas as margaridas brancas e as distribuis simetricamente, eu agarro no pano e acabo o trabalho. Limpo a imagem de Jesus na cruz até brilhar e dou-lhe um beijo. Parto o caule de uma das margaridas até ficar bem curto, bem pequeno, até a margarida ser só pétalas brancas e prendo-a junto à cabeça tombada de Jesus na cruz. Depois limpo a fotografia do avô e dou-lhe um beijo. Para mim é o mais importante – esqueces-te sempre do mais importante. Como retoque final enches o balde preto de plástico com água que lanças na campa branca do avô. Enches o balde de plástico preto com água que lanças na campa modesta do pai dos teus filhos. Enches o preto e plástico balde com água que lanças na campa eterna do teu marido. Colocas o detergente – sabão – e o pano no balde. Sou eu quem o leva agora para cima. Sacodes os pés, bates os pés e eu imito-te. Ao sair do portão sorrio ao porteiro que não se vê, como quem agradece a estadia. E sigo. Vens mais atrás. Olho para ti e és uma mancha escura na claridade. Subimos a rua. Podíamos subir a rua de olhos vendados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e empurra-nos. Abriste o teu portão cinzento com barulho – força – e o cão saiu. Pousei o balde no quintal. Era hora do lanche.
E este foi só mais um dia entre muitos dias iguais a este. Dias em que tu, já cansada do caminho, desces a rua e levas o balde, o pano e as flores contigo. Mas neste dia era Julho. Era Julho no seu esplendor: o sol ardia em chamas nos olhos. O ar era feito de ondas de calor, correntes de sol – bafos quentes. E eu ia contigo.»
E agora, avó?
Agora serei só eu a limpar a campa do avô.
A campa do avô que agora é a tua.
A vossa campa.
A tua campa, avó.
Esse pedaço de chão tão fundo,
Tão profundo,
Tão sem fim,
Onde dormes
para não mais te ouvir,
para não mais te ver,
para não mais te tocar.
E agora, avó?
Avó eterna. Avó que eu amo.
Quem limpa estas lágrimas que deito?
Quem limpa este sangue sem vida do meu coração?
Raquel Morgado