segunda-feira, 26 de março de 2007

Eu reparei

Primeiro foi o marido. Depois foi o filho. Ela ficou, poupada por uns anos pela morte.
Agora, só, resta ela e o gato.
E senta-se no banco do jardim todos os dias da sua vida em que faz sol. Sol que lhe aquece os ossos. Velha viúva de chinelos pretos que te sentas sozinha no jardim. Todos passam por ti e ninguém repara.
Porque és velha.
Porque és viúva.
Porque és triste.
Porque és inútil.
Porque és sozinha e nada te sobra.
Porque não passas de uma sombra - sombra sentada à espera do pôr-do-sol.

Velha

Velha

Velha

Velha

Inútil

Velha

Nem o gato precisa de ti.

Raquel

3 comentários:

Anónimo disse...

Ja n postavas ha alguns dias, ja tinha recebido queixas d que te andavas a baldar...sabes tens de alimentar a avidez dos teus leitores...
agora o problema é o texto q deixaste em casa =S...
Besos

Anónimo disse...

Prometo esmerar-me mais nas férias. Ideias não me faltam. Mas esta inércia embrulha-me os dedos. Os "meus leitores ávidos"... tu e pouco mais.

Anónimo disse...

De facto hoje estou estádio de lassitude mental e física que não me vai ser possível tecer um longo comentário a este teu trabalho…

Mas quero sublinhar desde logo a clareza da ideia, sem qualquer rebuscamento estéril, sem adornos… com uma violência implícita que é como um murro no estômago dos mais susceptíveis, que é como um relâmpago que rompe de súbito por entre o azul brando dos céus de Abril…é de facto avassalador…embora não haja aqui qualquer figura de estilo veja-se: “Primeiro foi o marido. Depois foi o filho. Ela ficou, poupada por uns anos pela morte.”

Só deste excerto se antevê um quadro tenebroso de lugubridade…e deste excerto se retira já a dilacerante ideia da solidão; como nos diz José Saramago: “ A solidão; uma das maiores desgraças do nosso tempo…” por outro lado não lhe morreu só o marido, mas também lhe morreu o filho, tal é uma fatalidade tormentosa que só quem a sofre a pode descrever. Alguém dizia uma vez que é contra natura uma mãe enterrar um filho…e de facto assim é! Não se sabe o motivo da morte do filho, pode ter sido um acidente fatídico, pode ter sido uma doença que lhe ceifou a vida ou ainda pode ter sido um suicídio, que torna a situação ainda mais horrenda e lacerante…

Esta é a única obra na qual não te consigo visualizar, há uma tal distancia da tua corporeidade jovial desta figura decrépita e triste desta obra, que não te consigo imaginar assim tão dolente, langorosa e carcomida pelo vendaval voraz do tempo!

Só consigo associar esta figura desditosa a uma daquelas senhoras do Alentejo, com as peles flácidas e enrugadas como tecidos irreversivelmente amarrotados!
Essas senhoras que estão sentadas num banco colado a uma casa tão alva como a luz do sol e sempre a olhar para o vazio da tarde à espera de que alguma eventualidade quebre aquela monotonia triste e monocórdica da sua existência.
“E senta-se no banco do jardim todos os dias da sua vida em que faz sol. Sol que lhe aquece os ossos. Velha viúva de chinelos pretos que te sentas sozinha no jardim.”

Tu que ainda ontem te vi, tão jovial, tão surpreendentemente enérgica, tão formidavelmente graciosa não vestes o traje tristonho desta figura campesina, nem no mais longínquo dos horizontes temporais, a ti só te imagino graciosa e com uma fisionomia dotada de imunidade ao tempo!...

Esta mulher à qual só lhe resta a bondosa companhia de um animal de estimação “o gato”, já não tem qualquer fulgor, já não tem qualquer força anímica, apenas vive como um riacho que acaba por secar sob a ditadura fulgorosa de um verão mais ríspido!

Por acaso a minha avó tinha uma vizinha que também já faleceu que se assemelhava a esta senhora que nos apresentas… viúva, porém sem filhos e só com a companhia forçosa de vários animais de estimação, que também por acaso eram gatos! Mas esta chegou a ter problemas respiratórios derivados de tal companhia bondosa e nociva para a saúde dos seus pulmões.

“Todos passam por ti e ninguém repara”… é de facto motivo para uma infinda mágoa, é como diria Fernando Pessoa morrer sem ser visto na curva da existência…é como ser uma flor-de-lis durante décadas para acabar murcha, seca, fenecida numa improficiência gritante, despida de luminosidade e de interesse, como um fragmento de um vaso estilhaçado…

Será que há num estádio existencial com esta compleição lastimosa subsiste alguma aspiração pela vida? Se a cada manha a alma desta senhora se assemelha a um espelho que não emite reflexo, isto é, um espelho estéril, como considerar existir ainda algum resquício vago, tímido até de desejo pela existência? Esta pessoa desprezada por toda a massa societária, e sublinhe-se que não é um desprezo doloso como se diz em Direito é apenas uma displicência, indiferença perante um ser que às gerações de hoje nada diz! Quase sinto pena do abandono a que esta mulher foi condenada, um abandono que é quase um exílio, como não entrar em anomia social, como evitar perturbações psicossomáticas? Depressões, suicídios? Se durante todo um vasto número de anos fomos alguém, nem que seja no exíguo plano comunitário, como passar de alguém para nada? Como um ser humano pode sofrer a depreciação valorativa que sofrem as moedas em países hiper inflacionários? É triste, mais triste que a dor de Bocage sob a agrura dos seus amores que na alma lhe ferviam tumultuosamente…ou a dor de qualquer ultra-romantismo, pense-se no paradigma de Amor de Perdição, em que Teresa Albuquerque morre de amor! A morte de amor é pior do que a morte de solidão, ambas compartilham o facto de normalmente não serem voluntários, pois é rara a pessoa que quer ser solitária como um lobo, mesmo insignes rostos da solidão como Alberto Caeiro: “ Não tenho ambições nem desejos; Ser poeta não é ambição minha; É a minha maneira de estar sozinho…” ou mesmo Eça de Queiroz que invocava a necessidade imperiosa da solidão para que a sua inspiração brotasse copiosamente…Se o primeiro nem sequer existia fisicamente o segundo existia e tal brocado era contraposto a uma vida social muito activa, daí que o magistral e sábio Aristóteles não tenha perdido a sua intemporalidade “O homem é um animal social” como excluir a grandeza societária de uma vida sem converter o néctar doce da convivência no acre fel do isolamento? Mesmo os eremitas, os cenobitas, esses seres estranhos à convivência social, que por força da convicção religiosa despem a sua natureza social para atingir fins superiores e extra terrenos, mesmo esses são na minha óptica seres sociais só que como nos diz Herculano no prologo de “Eurico, O Perisbeto” foram amputados espiritualmente; leia-se pois é deliciosa a passagem: “ Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato à luz do sentimento e sob a influência da impressão singular que desde verdes anos fez em mim a ideia da irremediável solidão da alma a que a igreja condenou os seus ministros, espécie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existência na terra.”

De facto se viver no celibato já é uma condenação então veja-se numa total ausência de contacto com vida social, isto é, viver só… aquilo a que os sociólogos atentam dizendo: “Nenhum homem é uma ilha!”

E deixa-me repetir novamente: “Velha viúva de chinelos pretos que te sentas sozinha no jardim. Todos passam por ti e ninguém repara…” será que esta pessoa já não existe? No plano fáctico, no plano físico ela existe, mas ela no plano prático, no plano da vida enquanto comunicação esta não existe, e a solidão dela não é colmatada pela existência do gato, o gato é um analgésico que não cura a doença, é como uma espécie de “Sport Spray” que alivia a dor por um instante para que depois volte uma dor maior, isto é, adia a dor da lesão real!
Basta cair na escuridade da noite, para que o eco da própria voz se torne mais pesado que chibatadas no dorso e para que se possa contemplar a face fria da solidão que assalta e assola a paz de qualquer alma sã! Não vale a pena comprarmos um gato ou apanharmos um animal na rua para tentar enganar a nos mesmos, atirando areia para os nossos próprios olhos, vendando-nos a nos mesmos a face desfigurada da nossa existência…tal é tão absurdo quanto os pontões que se criam para evitar a abrasão marinha, e que no fundo só desviam a ondulação para um outro ponto onde ela será mais forte e impetuosa, isto é, “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia” Eça… a nudez forte da verdade não pode ser afastada, nem nada o consegue efectivamente, pois contra a verdade tudo é um mero verniz que estala sob o calor colérico da verdade!

E depois apresentas secamente o conjunto de causas daquela solidão: “Porque és velha.
Porque és viúva.
Porque és triste.
Porque és inútil.
Porque és sozinha e nada te sobra.
Porque não passas de uma sombra - sombra sentada à espera do pôr-do-sol.”

Foi deveras fria a forma como abordas-te as razoes da solidão desta, frio no sentido que é como um balde de água fria sobre qualquer um, ser-lhe apresentado sem qualquer comedimento um diagnostico que declara retumbante e gelidamente o cadáver vivo que alguém é! Todavia o diagnostico da “doença da velhice” é de um realismo arrepiante, dilacerante, total…

Eu sei que ser-se velho não é sinonimo de doença, mas aqui neste caso especifico que dizer desta velhice, quando nela não se encontra nem um chilrear breve, nem que dissonante de animo, de vivacidade, de estimulo…ora neste vácuo absoluto de interesse pela vida só vale a pena considerar a velhice como doença crónica e incurável, que só terá cura com a morte!

Isto do esvaziamento do interesse pela vida entre muitas coisas; relembra-me uma das cartas de Simão Botelho a Teresa de Albuquerque da qual vou transcrever um pouco: "Não esperes nada, mártir - escrevia-lhe ele. - A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo, Caminhemos ao encontro da morte... Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?

Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te chama, vai. Se tem de renascer para ti uma aurora de paz, vive para a felicidade desse dia. E, se não, morre, Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dor, é o esquecimento que salva das injúrias a memória dos padecentes".
Ao que responde Teresa: "Morrerei, Simão, morrerei. Perdoa tu ao meu destino... Perdi-te... Bem sabes que sorte eu queria dar-te... e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te. Se podes, viva; não te peço que morras, Simão; quero que vivas para me chorares. Consolar-te-á o meu espírito... Estou tranqüila. Vejo a aurora da paz... Adeus, até ao céu, Simão".
De facto se existe pessoa mais inundante em vacuidades, essa pessoa decerto devo ser eu, estou a dizer isto porque se calhar comentários com estas inserções devem ser entediantes, mas se o forem di-lo por favor!...
Eu sei que no caso supra apresentado estamos no campo do amor ultra romântico, mas só fiz referencia para veres que por vezes a miséria total de uma pessoa se restringe só a perda ou à inacessibilidade de uma coisa; a realização no amor! Imagina a situação desta mulher já nos pináculos da menopausa, sem apetites pelo sexo oposto, pelo menos susceptíveis de correspondência, sem marido, sem filhos, sem vizinhos… só ela, o arquipélago da solidão encaixado tristemente no seio do Oceano das lamentações! Deste arquipélago só o mar se vê e só o isolamento se percebe!

Esta ideia de arquipélago que me assaltou o espírito fez-me lembrar um filme, talvez um dos maiores daquele que é um Deus na representação (Tom Hanks) “O Naufrago” só de lembrar o filme, a estas horas da manha já me dá uma nostalgia plangente e langorosa…se viste hás de te lembrar vivamente do Willy, que se perde no mar quando o Tom tenta fugir da ilha momento triste esse, mas o que queria referir nesse filme para alem da excelência da representação de Tom, é o facto de ele ter feito a partir de uma bola de voleibol o Willy, com cabelo feito de ramos de arvores e o rosto pintado quase sorridentemente, é de facto brilhante o esforço de um homem para evitar a loucura num quadro de isolamento total…pois mas esta senhora aproxima-se quase de uma senhora que José Saramago apresenta numa obra maravilhosa que é: “A carta para Josefa, minha Avó”, que obra, que obra essa, de uma tal profundidade que quase fico petrificado quando a leio e veja-se estes excertos, de Saramago para Josefa:
“Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito…
“Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar.Com isto viveste e vais vivendo…”

Enquanto no naufrago o Tom era um homem hábil feito de saber técnico e livresco, esta mulher que nos apresentas decerto será mais como a avó Josefa…embora esta seja a minha humilíssima e pobre opinião, quem sou eu para interpretar o que quer que seja, mas já que estou a comentar ouso!

E por fim dizes:”… não passas de uma sombra - sombra sentada à espera do pôr-do-sol…”
Na minha óptica, talvez inquinada de miopia interpretativa ou de lucidez de espírito, há aqui uma categórica alusão à morte, uma alusão fabulosa à morte, quase diria um eufemismo, uma forma melodiosa e lírica de descrever o terrível espectro da morte! Muito bom mesmo…

E depois de a chamares velha vezes sem conta, pois embora no texto materialmente cesses de a chamar velha no plano do devaneio eu presumo que esse velha será como uma reverberação sem degradação acústica do adjectivo “velha”, como se este se proleta-se no tempo e no espaço até que a evidencia da velhice cessasse com a cessação da “existência” ou talvez antes da expiação desta senhora…

E terminas dizendo: “Nem o gato precisa de ti.” É inegável que nem o gato precisa dela, pois ela é que precisa do gato, o gato felino, animal de instintos selváticos, rapidamente se adapta à vida sem os mimos dóceis de uma dona caridosa…pois ao contrario dos cães os gatos detêm uma capacidade de adaptação ao meio muito superior…basta só pensar-se de que espécies estes descendem para não nos admirarmos com tais faculdades!

Bom novamente escrevi demasiado e são 4 da manha… vou dormir depois diz-me o que achaste…

Hélder Silvestre