terça-feira, 20 de março de 2007

Azul

Na cabeça o véu: branco, bordado. A minha mãe fazia questão de um penteado especial. Tu querias o meu cabelo solto, simples, sem poesia. Deixei o cabelo como tu mais querias.
Nessa noite levaste-me a ver o mar.

Ar. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Ouves a minha respiração - brisa. Escutas o silencio que antecede a minha boca na tua. É melodia o som de me aproximar?
Saliva. Sabes a nicotina, tens sabor a café. Da minha língua prova o chocolate preto do nosso bolo que amargou.
Vultos. Como ondulam os meus cabelos longos? Com quantas formas me desenha a noite? Vês-me inteira?
Carne. O meu vestido. Sentes-lhe a textura? As minhas pernas - carne. O meu vestido – seda. As minhas pernas: seda. O meu vestido – carne. A tua mão no meu vestido. A tua mão nas minhas pernas.
Maresia. Suor – cheiro a algas entranhado nos poros da nossa pele. Sinais do teu corpo no meu que arrefece. Memórias. E o nosso cheiro a embriagar-me a alma.
O nosso filho.

Antes de nascer já o desenhavas, perfeito. Cada dedinho um pormenor. E a boca pequenina e simples. Os olhos – brilhantes. Quando o nosso filho nasceu tu estavas ao meu lado, como em cada momento crucial da minha vida. Estavas ao meu lado e a minha força era proporcional à força do teu desejo de ter este filho. Nosso tesouro. Quantas imagens, quantas fotografias temos nós deste botão de rosa?
Aquela tarde de Verão em que ele adormeceu ao meu colo no jardim e tu foste buscar a tela, marido pintor. Essa é a minha imagem mais bonita.
Pintaste-nos com todas as cores, realçaste o ondular do meu cabelo ao vento. E o nosso bebé perfeito e delicado de encontro a mim. A minha pele. A pele do nosso filho: algodão. Pincel. E o teu sorriso de estrelas a encandear-nos.
Anda, vamos fazer outro filho.
Raquel

3 comentários:

Anónimo disse...

Mais um magnifico retrato escrito... a cada texto aumenta o meu orgulho em ter feito o blog ctg. =)
...ah e a referencia ao chocolate preto... xD
bjs

Anónimo disse...

Não sei se é por ser de manha ou por estar a ouvir a banda sonora do “Pride and Prejudice” que estou sensível ao que leio, porém deixa-me dizer-te que esta prosa doce e eloquente, traduz um sentimento tão nobre, tão suave, tão gracioso, que não o poderia deixar de o enquadrar num estilo que traduz quase de forma táctil uma imagem perfeita de romance, sem cair no perfeccionismo Queirosiano das descrições, traças um belo fresco de um romance de fazer inveja a um Schiller, com a sua tão famosa “Tempestade e ímpeto”… o teu estilo calmo nesta obra, parece-me que traz como que a bonança depois da tempestade sanguinolenta do “Quantos degraus para a eternidade”… há aqui no meu entender, um estilo diferente, de uma fleuma torrente, daquelas obras que saem de uma alma tão branda como um lago, daí que não exista um titulo mais próprio do que “Azul”… Na pintura o azul, consoante a sua tonalidade, descreve diferentes sentidos: em termos muito gerais (porque o azul tem inúmeras tonalidades) o mais escuro, como por exemplo é representado pelo impressionista Van Gogh no “A Noite Estrelada” ou por Picasso no seu período azul que simboliza de certa forma frieza, depressão no sentido lato do conceito ou tristeza e temos o azul claro que representa para muitos harmonia, mas para mim sinceramente é mais do que harmonia…que dizer do “azul céu”, que é uma cor própria diferente até do “azul bebé” pois neste azul há uma tal harmonia cromática, que embevece, que nos embriaga de um deleite altíssimo… na tua obra era uma tarde de verão “Aquela tarde de Verão”, bom que dizer de uma tarde de Verão? Uma tarde de Verão na literatura do século XVIII não representava a apoteose do romance, o romance exigia um mês de Abril ou Maio onde as flores começam a desabrochar e os corações depois de um Inverno álgido, começam a propender também para a poesia de um romance intenso…mas tal era no século XVIII, ah mas se me permites tal ousadia, imaginei-te nesta obra como uma Condessa, pintada pelas mãos do seu próprio marido… que gracioso, que aristocrático, que sublime…é uma honra que supera o comum dos mortais e que perante a frialdade e a celeridade desenfreada em que correm as centúrias na era de massas, me leva a enquadrar o teu belo quadro no século XVIII, aí sim, num período fértil de romantismo, de mulheres seduzidas pela eloquência dos poetas e pelo devaneio de um romance à “Romeu e Julieta” embora Shakespeare seja do século XVI, mas como sabemos a sua obra era muito avançada para o seu tempo… e durante o século XVIII lia-se Shakespeare como quem lê hoje um Dan Brown ou JK Rowlings…para mim hoje a mulher já perdeu a sua graça poética, a mulher pode inspirar pintura, pode inspirar poesia, mas não é pela graça, nem pela subtileza do estilo, da postura e do falar suave… hoje a mulher ainda influenciada pelo feminismo do século passado só pensa em afirmar-se, compelir contra as instituições conservadoras e adquirir uma identidade o tão masculina quanto possível… sem querer criticar tal coisa, pois a funcionalidade ganhou a força de lei absoluta e o estético e o sensível que se advinhava no olhar de uma mulher é hoje o nada despótico como diria Virgílio Ferreira…
Sem me querer perder mais em dissertações sobre as assimetrias ou as diferenças entre a mulher moderna e a clássica (por acaso já escrevi sobre isso… um dia mostro-te) quero dizer-te que estas de parabéns… todavia quero só mencionar duas ou três coisas mais…
Em relação ao cabelo, aquela questão de a tua mãe querer um penteado que Eça descreveria como religiosamente adornado ou como uma fonte de soberania ou talvez ainda como uma magnificência que se acrescenta ao esplendor dos traços leves do teu rosto… e tu deixas-te o cabelo solto como ele queria, aí está um traço de modernidade, um traço que é quase monumental… um cabelo solto ao vento é hoje de uma frequência inquantificável, mas de uma raridade imensa no séc. XVIII… eu sei que parece estranho estar a comparar isto com o século XVIII e séc. XIX, mas isso tem uma razão única e exclusiva: quando eu li a ultima parte e partes do segundo paragrafo a itálico, enquadrei a obra num idílico romântico do século, vesti-te mentalmente com trajes do século XIX, imaginei-te de linhagem real, num jardim amplo e florido a brincar com o “teu filho” com a docilidade de uma mãe sem preocupações laborais e só com interesses domésticos e literários…desculpa-me o excesso, mas não pude evitar imaginar-te assim…
Eu não quero escrever muito mais para não me tornar enfadonho, daí que só vá escrever um pouco mais sobre o último paragrafo, pois este deu-me a maior inspiração, embora não tenha escrito quase nada sobre o segundo, que tem muito que se lhe diga, mas também já vou na 2ª pagina a comentar, e daqui a pouco nem consegues ler isto…
Sublinhe-se a força proporcional de ambos: “Estavas ao meu lado e a minha força era proporcional à força do teu desejo de ter este filho”; há neste excerto uma punção de realismo portentosa…de facto o populaça tem tendência a distinguir o amor de mãe do de pai em relação aos filhos, pois a mãe sofre as dores de parto, os incómodos de amamentar, etc. e pai não, mas tal é na minha óptica é só mais uma daquelas feéricas criações do conhecimento empírico do senso comum… há neste traço da tua obra, algo que poderíamos reconduzir até ao campo da filosofia…e por outro lado logo a seguir “Nosso tesouro” esta frase, curta e mais incisiva e violenta na sua vitalidade que o epicentro de um terramoto! Essa frase revela um amor enormíssimo, talvez o maior que os grilhões das palavras (como diria Antero de Quental) te permitem…ou talvez como diria Eça nas suas cartas de amor a Clara “Amo logo existo!” boa frase não achas?
E a seguir continuas muito bem, mas não vou poder comentar palavra a palavra, se não daqui a pouco nem vou as aulas, para a próxima comento com maior detalhe, só para terminar a ênfase no teu cabelo ondulado ao vento é facto tangível é de facto uma imagem, há aqui muitíssimo de pictórico é inegável, pois quando o dizes é impossível deixar de imaginar um quadro que quase faz escapar uma lágrima de emoção, mesmo ao mais inexorável dos corações!
Por fim o sorriso de estrelas do teu marido, esta suplantou tudo, é deveras eloquente, um “sorriso de estrelas”, se me permites a ousadia eu associei esse sorriso a um êxtase superior, a um grau de satisfação e a um amor por ti e pelo filho que só o brilho celestial de uma constelação pode firmar com propriedade e justeza. O encadear do sorriso do teu marido relembra-me uma passagem bíblica em que Moisés vai falar com Deus numa montanha e solicitou a Deus que se deixa-se ver na sua grandeza e Deus disse-lhe que tal não era possível, por causa do pecado dos Homens, mas depois de insistir Deus permitiu-lhe vê-lo só de costas…sim é verdade, Moisés viu Deus de costas… minha querida, quando ele voltou do montanha ninguém conseguia olhar para ele, pois a sua cara ainda guardava o brilho da grandeza divina…e tiveram de tapar a cara a Moisés pois não era possível suportar aquele brilho era como estar a olhar para o Sol! Embora hajam diferenças substanciais lembrei-me disto, mas vê que, pesem embora as diferenças existem pontos de semelhança; Deus tem esse esplendor inenarrável, o teu marido também espraia um esplendor inenarrável dentro daquilo que ao Homem (criatura) lhe é possível e que tu mulher apaixonada és capaz de ver no teu Homem!
E depois o teu desejo de procriação final, faz incidir um raio de luz sobre o instinto, sobre o gosto da maternidade, sobre o desejo de anafar a terra do teu sangue…o desejo de dar ao teu marido o prazer de ser pai de novo e a ti mesma de ser mãe, dar o prazer, alias milagre da procriação! O teu amor pelo teu marido é que te permite tal desejo, pois se não houvesse esse amor, talvez só te interessasse o libido, o êxtase carnal, a volúpia, o lascivo… mas não é isso, não há em ti nenhuma frigidez, pelo contrario só amor, amor, amor azul!!!

Adorei…
Helder Silvestre

Anónimo disse...

Tanto escrevi que me esqueci de mencionar o seguinte: Esta obra relembrou-me por momentos uma parte um grande filme de Stanley Kubrick, que é o Barry Lyndon… é antigo o filme, mas é considerado um dos maiores expoentes do espolio do realizador, vê se ainda não viste e vais ver que o filme é fabuloso e há partes que me fazem lembrar a tua obra ;) beijinhos

Hélder Silvestre