sábado, 29 de setembro de 2007

Tão Frias as Manhãs

Reconheci-te pelo sabor.
E pela forma envolvente de emaranhares o cigarro entre os dedos.
Depois da nuvem de fumo, no meio de um bafo de palavras quentes, quando os olhos pedem o mundo – reconheci-te. Olhos cheios de sol ao anoitecer a pedirem tanto.
E as minhas mãos vazias a darem-se e a compreenderem-se por dentro

a cada instante de entrega em que me habitas.
Na noite.
Raquel

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Fragilidade

Desceste a escada de madeira pisada pelo tempo. A tua mão apoiada no corrimão de ferro pintado de branco desenhava o caracol perfeito da descida. Eu via a tua mão e a languidez da tua mão e via o teu corpo na dormência – os candeeiros na parede iluminavam-te inteira. Descias romanticamente: os teus movimentos confundiam-se nas formas macias e aveludadas do papel de parede. Algodão doce. Tu pertencias ao espaço – de forma envolvente – tu eras o espaço, porque o espaço era teu.
A tua casa.
Desceste a escada de pinho pisada pelo tempo. Os teus pés eram a suavidade dos saltos agulha a suportar o peso da tua existência. E o gato enrolava-se nas tuas pernas à velocidade em que descias. O instante de desceres cada degrau era igual ao instante do gato a espreguiçar-se do sono. Eu via as tuas pernas magras bambolear nos saltos e o gato a enroscar-se em ti, na descida acutilante da escadaria que se impunha – eu via-te toda porque eu era os teus olhos a conhecerem-se por dentro na iminência do exterior.
A tua casa.
Desceste a escada de verniz pisada pelo tempo. O teu corpo era a transparência pudica da carne no momento em que se entrega. E os teus ossos davam-se a cada valsa de um passo. O teu corpo deslizava como um caracol perfeito na descida. Eu via cada movimento teu repetido a cada degrau: as tuas ancas estreitas oscilavam mecanicamente. As tuas ancas eram o ondular do gato a esfregar-se na rendição de um toque teu. Eu via porque eu era o teu vestido plissado e o dia em que compraste o teu vestido plissado. Vermelho escuro. Eu via-te porque eu era o teu gato e cada instante de candura na simplicidade de te relacionares com ele.
Caminhaste até às begónias – o teu jardim – enquanto o vento se agitava nos cabelos na tarde outonal. O gato deitou-se à sombra indolente da árvore de tantos dias, a ronronar na preguiça. O gato impregnado de ócio, dilacerado pelo infinito da tarde que cai, o gato deitado à sombra antiga da árvore do jardim foi a última vez que os teus olhos o viram.
Mas ele lembra-se de ti mais tarde: as tuas mãos caíam pesadas no fim dos braços cansados. Os braços cansados ruíam ao longo do teu corpo, estéreis, vazios, ocos de vida. E os teus pés, os teus pés não tinham os degraus da escadaria de madeira de pinho envernizada para te suportar, para suster a tua existência, para te amparar. As tuas pernas já não hesitavam na firmeza dos saltos agulha - havia leveza nos gestos. O teu corpo era o teu vestido franzido de ancas infecundas a rodopiar à força do vento – o vento enforcado nessa tarde de Outono.
E a tua cabeça tombava sobre o ombro.
Eu não te vi. Desse instante só sei o que ficou gravado em ti, pela certeza da sua imagem, enquanto descias as escadas. Tu sabes como acaba o caminho quando o caminho que escolheste é a única certeza que carregas dos dias. Tu sabes do fim, da imagem de ti no fim quando o premeditas, quando o antecipas, quando o desejas até à corda.
Eu não te vi. A última lembrança que eu tenho é a última que a tua mente quis alcançar depois da visão do gato deitado à sombra. Na última lembrança era noite e o vento assobiava baixinho. As únicas luzes vinham da televisão a preto e branco, que animava o serão. Era noite de bolachas e chá de limão em cima de um banco, em frente ao sofá. Encostavas-te nele com a suavidade de quem segura uma chávena cheia e tapavas as pernas com a manta de retalhos. Eram horas quentes feitas de açúcar e manteiga, em casa da avó. Tinhas uma boneca de trapos ao teu lado que se confundia com os retalhos da manta que te aquecia. E o ar agitava-se lá fora. Tu ouvia-lo porque o silêncio te ensinou a ouvir e tu aprendeste. Eras criança e tinhas medo do vento, mas havia o conforto de uma manta de retalhos que te fazia esquecer. E havia braços velhos e mornos a suportar toda a fragilidade.
A tua última recordação.
Eu sei-a porque eu sou a tua memória. Eu sou aquela que ficou suspensa no instante de a abandonares. Eu sou tudo aquilo que não quiseste lembrar, tudo aquilo que já não podes lembrar. E desvaneço-me nua e desmembrada na agitação da tarde de todos os vendavais – em que me deixaste.
Perdeste o medo do vento?
Raquel