sábado, 28 de abril de 2007

Húmus

O céu vai ficar parado no instante de eternidade das sombras sobre mim. Suspenso na lembrança dos meus cabelos, o único movimento virá dos olhos dos pássaros - estrelas de água em queda sobre o manto de terra no meu caixão.
No dia do meu enterro, a música será o choro dos cães ao longe na certeza da minha ausência. A convulsão das suas lágrimas será por mim, pela suspensão eterna, sempiterna do meu amor. Como uma seta a demorar-se no peito - saudade.
Se tu passares por mim, nesse dia em que o céu ficar parado, leva de mim os meus sonhos guardados no silêncio da espera. Só então poderás ver a derrota que eu levo do mundo por ele não entender
que os animais são almas atadas numa linguagem indizível.
Leva de mim os meus sonhos e grita ao mundo
que os animais são almas atadas em fios de metal
Que eu sozinha não consegui destrinçar.
Grita tanto quanto a minha voz gritou
e desata-os dizendo-os.
Leva também de mim a lembrança dos meus cabelos e do meu sorriso depois do beijo. Mas peço-te, se passares pelo meu caixão no dia do meu enterro, leva de mim os meus sonhos e guarda-os, grita-os, desata-os do medo. Leva os animais todos contigo, leva a fragilidade enternecedora dos animais no peito, que eles chorarão por ti.
E guarda o que sobrou do meu amor em algibeira.
Raquel

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Acto ou Efeito de Pulsar

150 a 170 vezes o teu nome repetido
Nas paredes que nos guardam
Como segredos.

Do batimento do coração – meu,
Drena o sangue - tinta - nas paredes
Como veias.

E a minha respiração é
A turbulência
Taquicardíaca da tempestade lá fora.

Pulsação.

Da minha boca
Como do meu coração
Em sangue irrigado nas paredes
Quantas vezes o teu nome repetido?

150 a 170 por minuto.

Conseguirá o mundo
Nas paredes pintado
Guardar-nos como segredo?

Coração.

Raquel

terça-feira, 24 de abril de 2007

À Lareira dos Dias

Pés quentes
até às cinzas.
Raquel

sábado, 21 de abril de 2007

Bebe-me

Entorno-me no mais insidioso de ti
Desconcertada da inclinação do sopro.
Entorno-me
Como se fosses copo
Como se fosses vidro
E me pudesses segurar inteira.
Inclino-me no mais pérfido de ti
Como pau espetado na terra a ver os movimentos da sombra.
Desconcertada pelo sopro
Entorno-me insidiosa.
Basta um pouco mais de fôlego, um pouco mais de __________
E o copo transborda
Na vertigem
Do sopro
Da inclinação
Desconcertada.


Raquel

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Há um corredor.
Ao fundo: duas portas.
À direita uma porta.
À esquerda outra porta.
Escolhe.
Ao fundo do corredor há
duas portas.
Uma porta à esquerda.
Outra porta à direita.
Gritos e uma promessa.
Veneno.
O corredor
tem duas portas.
Em qual vais entrar?
Raquel

domingo, 15 de abril de 2007

Silêncio entre Vírgulas

Há pássaros em bando no céu e a noite cai lentamente sobre a terra. Como cortina que desce, a noite precipita-se sobre nós. O vento que corre como brisa tem o som dos pássaros a existirem no céu. Os candeeiros dobram esquinas e há luz quente no ar – ouro velho a iluminar a terra.
Sentada no jardim – descasco uma laranja. Descasco-a como quem despe – como se te despisse. E fica o teu cheiro nas minhas mãos depois de a comer. Alguma vez pudeste sentir outra coisa destas mãos que não fosse amor? Há cheiro a laranja e há ouro velho nas ruas debaixo do céu. Há cheiro a ouro e laranja nas ruas debaixo do céu. E há silêncio entre nós. Há silêncio na tua boca, entre as tuas palavras. Há , _________ , entre dentes. E existo eu, cá fora. E há ,_________, entre dentes. Há silêncio entre nós – não somos mais do que o grito do farol ao longe.

Os grilos cantam esta noite.

Procuro a chave caída no chão – tranco a porta – e vou rua fora. Ninguém, não oiço vozes nem passos. Só o farol ao longe. E o sino – nove badaladas. Há candeeiros nas esquinas como setas a indicar-me o caminho e eu vou.
Entro.
O chão está limpo. As paredes brancas: cal. As loiças brilhantes de pó. Pendurado acima do balcão um quadro em tudo semelhante a uma tela de Storck da qual nunca me lembro do nome. O ar está sujo, negro e baço.
Sento-me defronte para a porta e peço um chá. Limão. Tiro o casaco e retoco o batom. Há olhos a verem-me. Os meus olhos vêem olhos de homens a verem-me. Há olhos de homens a ajudarem-me a despir o casaco. Olhos de homens a borrarem o batom na minha boca.
O chá. Obrigada.
Açúcar. O tilintar da colher na chávena. O barulho ensurdecedor das conversas. O tilintar da colher na chávena. O barulho ensurdecedor dos risos. O tilintar da colher na chávena. O barulho do barulho ensurdecedor dos homens nos cafés.
E
silêncio
subitamente.
Só o tilintar da colher na chávena de chá.
Apenas o tilintar da colher na chávena de chá.
O tilintar da colher na chávena de chá.
A colher na chávena de chá a tilintar.
Levanto a cabeça como quem procura a resposta: tu. Açúcar dissolvido. Tu. E os homens a saberem tudo. Trazes na mão a pasta – pele – que te ofereci no último aniversário: vens do trabalho. E trazes nos olhos a ânsia por um café. Precisas que te percorra os cabelos com os dedos ao fim do dia. Há quantos dias deixaste de pedir que te percorra os cabelos com os dedos ao anoitecer? Oiço-te ao balcão – café. E deixo o dinheiro do chá meio bebido em cima da mesa. O instante em que visto o casaco é igual ao instante dos meus olhos parados sobre o céu na efemeridade dos pássaros.
Saio.
Há ouro velho nas ruas a iluminar-me o caminho – candeeiros. E o som do farol ao longe. Há os meus passos e o eco dos meus passos na confusão da noite. Procuro a chave no bolso do casaco e entro. Subo as escadas apressadas em direcção ao quarto. Dispo-me ofegante: a roupa no chão como tapetes. Sento-me no sofá branco junto à janela entreaberta do quarto. Os meus olhos vêem através da janela. Os meus olhos vêem o céu como uma cortina opaca fechada sobre a terra e a luz quente do candeeiro, lá fora, a iluminar ninguém. A lua: quarto crescente.
Tenho a certeza que vens.
O tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque do despertador denuncia a passagem do tempo. O sino: doze badaladas. Continuo à espera de ouvir a chave na porta. Continuo à espera de ouvir o trinco a abrir. Continuo à espera que subas as escadas, entres pelo quarto e me abraces com força. E me beijes. E me desarrumes toda de prazer e de perdão. Sim, ainda espero que me perdoes.
Nua no sofá branco junto à janela – adormeço. E há lágrimas dentro de mim. Como orvalho pela manhã, há lágrimas por dentro. Também há o sol – cortina a subir de uma noite que foi toda (inteira) dos grilos a cantar. E há ainda o, _________, entre dentes – o silêncio entre nós - precipício.
Descasco uma laranja.
Raquel

sábado, 14 de abril de 2007

Este poema é teu

Quero dizer-te.

Mas as palavras nunca serão suficientes. Nunca terão a intensidade simples e imaterial do momento em que me dou: metafísica.
Dizer-te que tu és aquele

Ser único e transparente

Que me faz sentir o meu corpo como o corpo que é teu – que a ti pertence – nunca será suficiente.
Repetir-te vezes sem conta que tu és o verbo mais musical da minha boca. Que tu és o som e a métrica em mim. Que tu és a força da frase na minha língua. Que tu és o ritmo mais volátil das palavras: adjectivo.
Dizer-te que tu és aquele

Ser feito de luz

Que me consome e me transcende – que permaneces em mim para lá da ausência, para lá do tempo, para lá da saudade – nunca será suficiente.
Repetir-te todos os dias da minha existência que tu és o murmúrio mais gritante da minha voz. Que tu – tu – és a anástrofe mais perfeita. Que tu és a palavra mais rasgada e mais brilhante dos meus olhos. Substantivo.
Dizer-te que eu

Sou tua

Nunca terá a intensidade simples e imaterial do momento em que me dou.
Raquel

segunda-feira, 9 de abril de 2007

Tu - sol.

Eu - girassol.

E há música entre nós - saxofone.


Raquel

Páscoa

As melhores amêndoas desta Páscoa:

«Olá! Eu sou o João e vou escrever um texto sobre a minha madrinha.
Primeiro de eu começar o texto quero dizer que ela é espectacular.
A minha madrinha é bonita, elegante, alta, magra, simpática e divertida.
Sempre que quero fazer algum jogo ou ir a algum lugar ela pode ir comigo, quando pode e quando pode oferece-se logo.
Ela também é persistente, principalmente nos estudos.
Ela às vezes está mal humorada, mas sei que ela gosta muito de mim e eu gosto muito dela porque ela é a melhor madrinha do mundo!»
Do João, meu afilhado.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

Alma de Sabão

Era Julho. O sol ardia os olhos – inflamava. O ar era feito de ondas de sol, correntes de calor: bafos quentes. Pegaste no balde preto de plástico que tinhas junto ao cão, no quintal. O cão deitado à sombra – inerte. O balde cheio de água, à sombra, com margaridas brancas. Um ramo enorme de margaridas brancas atadas com cordão. Deste-me um pano já cansado do caminho e detergente, que segurei religiosamente nas minhas mãos. Nas minhas mãos pequenas. Ao sairmos fechaste o portão cinzento com força, com barulho – não fosse o cão sair. Descemos a rua. Podíamos descer a rua de olhos fechados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e leva-nos embaladas. Assim que passamos o portão de ferro chegamos. Eu passei o portão de ferro: cheguei. O porteiro não se vê mas sente-se. Peço-lhe licença para entrar. Corro. Corro sempre em direcção àquilo que conheço – sei exactamente o sítio para onde vamos e o que vamos fazer. Corro como quem brinca e vou feliz. Chego primeiro, vens mais atrás. Caminhas no teu passo de mulher que trabalha tanto. Olho para ti ao longe e grito-te a dizer que cheguei, que cheguei primeiro, que cheguei antes de ti. Sorris. Olho para ti a aproximares-te: tens rugas e és bonita. Pousas o balde no chão e pedes-me para ir buscar água em baldes pequenos, outrora de tinta, que estão à entrada, junto ao portão. Eu sinto-me importante porque me sinto útil e vou. A água na torneira corre enérgica, ruidosa ao cair no balde. Balde que vai meio cheio. Já tinhas tirado as flores velhas e a água suja, quente. Molhas o pano na água que te trouxe, pões sabão – há bolhas de sabão no ar por um instante – e começas a limpar. Esqueces-te sempre do essencial para mim, por isso é que, enquanto preparas as margaridas brancas e as distribuis simetricamente, eu agarro no pano e acabo o trabalho. Limpo a imagem de Jesus na cruz até brilhar e dou-lhe um beijo. Parto o caule de uma das margaridas até ficar bem curto, bem pequeno, até a margarida ser só pétalas brancas e prendo-a junto à cabeça tombada de Jesus na cruz. Depois limpo a fotografia do avô e dou-lhe um beijo. Para mim é o mais importante – esqueces-te sempre do mais importante. Como retoque final enches o balde preto de plástico com água que lanças na campa branca do avô. Enches o balde de plástico preto com água que lanças na campa modesta do pai dos teus filhos. Enches o preto e plástico balde com água que lanças na campa eterna do teu marido. Colocas o detergente – sabão – e o pano no balde. Sou eu quem o leva agora para cima. Sacodes os pés, bates os pés e eu imito-te. Ao sair do portão sorrio ao porteiro que não se vê, como quem agradece a estadia. E sigo. Vens mais atrás. Olho para ti e és uma mancha escura na claridade. Subimos a rua. Podiamos subir a rua de olhos vendados – a rua já nos conhece. A rua sabe para onde vamos e empurra-nos. Abriste o teu portão cinzento com barulho – força – e o cão saiu. Pousei o balde no quintal. Era hora do lanche.
E este foi só mais um dia entre muitos dias iguais a este. Dias em que tu, já cansada do caminho, desces a rua e levas o balde, o pano e as flores contigo. Mas neste dia era Julho. Era Julho no seu esplendor: o sol ardia em chamas nos olhos. O ar era feito de ondas de calor, correntes de sol – bafos quentes. E eu ia contigo.
Raquel

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Amor
O cano quente da arma na tua boca fria - o gatilho.
Amor e
(pólvora)
Raquel