domingo, 15 de abril de 2007

Silêncio entre Vírgulas

Há pássaros em bando no céu e a noite cai lentamente sobre a terra. Como cortina que desce, a noite precipita-se sobre nós. O vento que corre como brisa tem o som dos pássaros a existirem no céu. Os candeeiros dobram esquinas e há luz quente no ar – ouro velho a iluminar a terra.
Sentada no jardim – descasco uma laranja. Descasco-a como quem despe – como se te despisse. E fica o teu cheiro nas minhas mãos depois de a comer. Alguma vez pudeste sentir outra coisa destas mãos que não fosse amor? Há cheiro a laranja e há ouro velho nas ruas debaixo do céu. Há cheiro a ouro e laranja nas ruas debaixo do céu. E há silêncio entre nós. Há silêncio na tua boca, entre as tuas palavras. Há , _________ , entre dentes. E existo eu, cá fora. E há ,_________, entre dentes. Há silêncio entre nós – não somos mais do que o grito do farol ao longe.

Os grilos cantam esta noite.

Procuro a chave caída no chão – tranco a porta – e vou rua fora. Ninguém, não oiço vozes nem passos. Só o farol ao longe. E o sino – nove badaladas. Há candeeiros nas esquinas como setas a indicar-me o caminho e eu vou.
Entro.
O chão está limpo. As paredes brancas: cal. As loiças brilhantes de pó. Pendurado acima do balcão um quadro em tudo semelhante a uma tela de Storck da qual nunca me lembro do nome. O ar está sujo, negro e baço.
Sento-me defronte para a porta e peço um chá. Limão. Tiro o casaco e retoco o batom. Há olhos a verem-me. Os meus olhos vêem olhos de homens a verem-me. Há olhos de homens a ajudarem-me a despir o casaco. Olhos de homens a borrarem o batom na minha boca.
O chá. Obrigada.
Açúcar. O tilintar da colher na chávena. O barulho ensurdecedor das conversas. O tilintar da colher na chávena. O barulho ensurdecedor dos risos. O tilintar da colher na chávena. O barulho do barulho ensurdecedor dos homens nos cafés.
E
silêncio
subitamente.
Só o tilintar da colher na chávena de chá.
Apenas o tilintar da colher na chávena de chá.
O tilintar da colher na chávena de chá.
A colher na chávena de chá a tilintar.
Levanto a cabeça como quem procura a resposta: tu. Açúcar dissolvido. Tu. E os homens a saberem tudo. Trazes na mão a pasta – pele – que te ofereci no último aniversário: vens do trabalho. E trazes nos olhos a ânsia por um café. Precisas que te percorra os cabelos com os dedos ao fim do dia. Há quantos dias deixaste de pedir que te percorra os cabelos com os dedos ao anoitecer? Oiço-te ao balcão – café. E deixo o dinheiro do chá meio bebido em cima da mesa. O instante em que visto o casaco é igual ao instante dos meus olhos parados sobre o céu na efemeridade dos pássaros.
Saio.
Há ouro velho nas ruas a iluminar-me o caminho – candeeiros. E o som do farol ao longe. Há os meus passos e o eco dos meus passos na confusão da noite. Procuro a chave no bolso do casaco e entro. Subo as escadas apressadas em direcção ao quarto. Dispo-me ofegante: a roupa no chão como tapetes. Sento-me no sofá branco junto à janela entreaberta do quarto. Os meus olhos vêem através da janela. Os meus olhos vêem o céu como uma cortina opaca fechada sobre a terra e a luz quente do candeeiro, lá fora, a iluminar ninguém. A lua: quarto crescente.
Tenho a certeza que vens.
O tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque do despertador denuncia a passagem do tempo. O sino: doze badaladas. Continuo à espera de ouvir a chave na porta. Continuo à espera de ouvir o trinco a abrir. Continuo à espera que subas as escadas, entres pelo quarto e me abraces com força. E me beijes. E me desarrumes toda de prazer e de perdão. Sim, ainda espero que me perdoes.
Nua no sofá branco junto à janela – adormeço. E há lágrimas dentro de mim. Como orvalho pela manhã, há lágrimas por dentro. Também há o sol – cortina a subir de uma noite que foi toda (inteira) dos grilos a cantar. E há ainda o, _________, entre dentes – o silêncio entre nós - precipício.
Descasco uma laranja.
Raquel

2 comentários:

Raquel Morgado disse...

Carina: há neste texto pontos de contacto com aquilo que tu sentes. Por isso, de certa forma, é te dedicado. Grande xi-coração, amiga.

Anónimo disse...

Muitos pontos de contacto, principalmente na parte do chá, tinha de ser de limão! Obrigada pela dedicatória, mesmo tenho havido coacção moral, sei que foi do fundo do coração.