terça-feira, 13 de março de 2007

Quantos degraus para a Eternidade?

São cinco para as três. Estás a chegar. Já oiço ou teus passos escada acima até ao quinto andar, o andar em que te espero. Não gostas de elevadores, nunca gostaste. Dou um jeito ao cabelo que teima em desalinhar, quero estar bonita para ti. Quero ver o teu sorriso grande, luminoso ao entrares com o livro na mão. Aquele que está na última prateleira da estante do escritório e que nunca cheguei a ler. Faço questão que o tragas.
O cabelo desalinha. Tu entras. Estás bonita, estás mais bonita hoje é aquilo que me sabes dizer sempre que entras. Os teus olhos brilham. Tu amas-me tanto. Alguma vez te amei assim?

Apetece-me chorar, apetece-me quebrar estas grilhetas que me prendem a vida, que me afastam de nós. Hoje quero abraçar-te mais que nunca, quero beijar-te, fazer amor contigo. Dá-me a tua mão, toca-me. Não reconheces já o meu corpo?
O meu corpo seco.
És linda.
O meu corpo a apodrecer.
És linda.
O meu corpo em pedaços a ser só resquícios de mim.
És linda
Alguma vez te fiz sentir amado?

Pousa o livro na mesa-de-cabeceira, deixa-o estar aí foi a única coisa que te disse desde que entraste com o livro na mão até a hemorragia começar e a minha boca ser só sangue. Corres e gritas por ajuda.
Não vás, beija-me. Fica comigo, não deixes que te obriguem a sair. Gritas, esfolas-te por ajuda. Não vás, marido meu. Fica, que espeta-se-me no peito a tua ausência.
A enfermeira,

o médico. Tu sabes que eu não vou aguentar outra operação. Diz-lhes. Diz-lhes que me amas, diz-lhes que sou a tua mulher, a mãe do teu filho. Diz-lhes que eu não vou aguentar outra operação. Não deixes que te afastem, tenho tanto para te dizer ainda, mas o sangue impede-me de falar, enrola-se nas palavras.
Marido, penteei-me para ti.
E o sangue jorra em golfadas gritantes. E a porta fecha-se. Estás do outro lado. Não chores.

Lentamente sinto a anestesia a surtir efeito. Sei que me restam apenas alguns instantes, breves minutos para adormecer até não mais acordar. E, no entanto, luto ainda para que me oiças do outro lado da porta. Profiro sangue manchado de palavras. Marido meu.
Amo-te tanto, marido meu. Foi o que ficou por dizer.
Isso, e o livro na mesa intocável.

Quantos degraus para a eternidade?
Cinco andares de elevador.
Raquel

3 comentários:

xCUNHAx disse...

Assim se confirma que as pessoas são de facto "caixinhas de surpresas", umas transportam em si surpresas que nos desiludem, erguendo em nós os piores sentimentos, qual Caixa de Pandora, outras porém deliciam-nos com as suas surpresas, como se de um festim de descobertas e alegrias se sucedessem. A menina Raquel tem com certeza vindo a ganhar um espaço meritório nesta segunda categoria! Quem diria que para além do seu aspecto pacato a que nos tinha já acostumado, escondia uma alma poética que se revela em textos como este! Já to disse mais pessoalmente, digo-te aqui e posso-te dizer cara a cara para que vejas que não há uma ponta de mentira, que este texto deixou-me arrepiado ( e não ... não foi nenhuma corrente de ar )! Posso não ser nenhum intérprete de poesia mas sei do que gosto e o que escreveste está carregado de emoção e de uma "crueza" que me fez visualizar a cena! Genial mesmo ...

Bem, os meus parabéns pelos textos, pelo blog, e acredita que ganhaste hoje mais um admirador!

Já agora, sente-te à vontade de visitar o meu blog :P

Beijoca e até amanhã!

Anónimo disse...

lindo!*

sustive a respiração a ler*

Anónimo disse...

De facto está extraordinario... deixa-me sublinhar que o teu texto têm conteudo lirico sublime, embora a compleição seja absolutamente diversa, quase como prosa, entrecortada por momentos de poesia categorica, como:
"O meu corpo seco.
És linda.
O meu corpo a apodrecer.
És linda...", de facto há no teu labor uma expressividade que parece que há ali um pouco de ti mesma, o que impressiona e choca profundamente, se um Cesário Verde, precisava de ver a realidade para criar, tu tens uma inspiração invejável, de um dramatismo sanguinolento em alguns dos seus traços:"Profiro sangue manchado de palavras" nesta frase conseguis-te o efeito que muitos iriam procurar invertendo o "anastrofe", procurando expor o sentido violento que conseguis-te, sem inverter a emoção como ela desabrochou é de facto quase próximo ao estilo de um modernismo pessoano ou de negreiros... visto que exprimes-te sem obdiencia a regras de estilo, apenas sob a égide da tua emoção tumultosa, todavia de uma beleza singular! Nunca te imaginei assim tão próxima de um "sanguinário romantico", será que há no teu estilo um pouco do ultra-romantismo de Castelo Branco, mas filtrado pelo modernismo? Nao sei, mas sei que gosto, gosto e gosto muito mesmo do teu estilo continua, que eu continuarei aqui para comentar e criticar contrutivamente quando desgostar... este foi o 1º comentario um pouco aerio ou desprovido de incisividade se quiseres, mas os proximos nao o serao garanto!!!
beijos Helder