quinta-feira, 22 de maio de 2008

Via-se agora a paisagem

Via-se agora a paisagem, nos intervalos de descanso da neblina.
Eram as árvores e os caminhos onde já não passa ninguém, que mais te encantavam. Vi os teus olhos, agarrados à vidraça do trem, construírem vidas, erigirem muros e tectos e caiarem paredes, debaixo do sol, sob a protecção de dúzias de chapéus de palha, gargalhadas e copos de tinto.
Construías histórias como se conhecesses por inteiro cada pedaço de chão. E, no entanto, aquela terra não era tua. Mas o comboio guiava-te, como se te emprestasse mais um pouco de sonhos, mais um pouco de vozes, mais um pouco de fé. E à medida que se arrastava nas linhas, o teu pensamento arrastava-se com ele – por entre as falhas da neblina.
Viste a velha sentada junto ao poço. E viste as laranjeiras em flor, e o cão e a casa pequena e triste, toda em pedra, e o baloiço em ruínas, isolado entre o extenso arvoredo, mais atrás. O comboio apitava na despedida, como se celebrasse toda aquela existência. E os teus pensamentos eram livros abertos na ânsia da leitura, depois deste olhar. Traçaste os contornos de uma vida que não era a tua, mas com a qual o teu caminho se cruzou, por um instante, à passagem do trem. E a velha era pobre e infeliz, e era mãe de filhos que existiam longe. Tão longe que a distância de uma viagem de comboio não podia quebrar. Talvez os filhos tivessem emigrado. Sim, talvez. Talvez tivessem emigrado. Sim, acho que vi os teus olhos construírem esta história.

Vi os teus olhos guardarem tudo – tanto: fragmentos de chão nos intervalos da neblina.
E vi os teus olhos levarem contigo laranjas maduras que o tempo deixou.
Raquel