terça-feira, 27 de março de 2007

Sepultei Todas as Rosas

O cenário era cinzento: havia pombos.
Havia nuvens.
Havia vento a entrar pelas frestas da porta de madeira: frio. Como facas espetadas na porta de madeira: o frio. Pedaços de vento levantavam, lá dentro, o pó e a palha no ar até caírem cansados, confusos. A chama das velas gastas, quase sem pavio, ameaçava apagar. Tremia, soluçava, hesitava. Nas paredes o suor, como cera, deslizava lentamente até secar. Nas paredes as aranhas. As paredes: teias de cera de suor de aranhas. No chão um cobertor e sacas de milho. Sacas de trigo. Sacas de farinha. Sacas de pão. E rosas.
Espalhados pelo chão: restos. Um par de botas – camurça. Um par de sapatos pretos de salto: verniz. Meias pretas de vidro entre o pó. O casaco branco. A saia preta. A blusa branca. Grãos de milho. Calças de ganga. A camisa às riscas. A camisola de lã. Pombos. O soutien. Rosas vermelhas.
As tuas,
as minhas
cuecas no chão entre a palha. Entre o pó.
E o vento gemia – lá fora, cá dentro.
Havia frio a entrar pelas frestas da porta de madeira: vento. Havia duas garrafas de vinho: tinto. E uma navalha.
Peguei numa garrafa enquanto te desfazias de álcool e de prazer. Enquanto vibravas, vermelho, inchado. Enquanto te desfazias como as velas, quase sem pavio. Sémen. Peguei numa garrafa enquanto não paravas extasiado. Não paravas extasiado e eu peguei numa garrafa. E o vento gemia cá dentro. Mas só até tu caíres de mim, no chão, erecto – como o pó e a palha depois do vento.
Olhei para ti.
Inerte no chão podre do moinho - peguei na tua mão.
Depois peguei na navalha.
Cortei-te um dedo – que lancei aos pombos. E cortei-te outro, e mais outro. Golpeei-te na barriga. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onde, doze vezes. E agora? Continuas extasiado?
Espalhados pelo chão: restos. Camurça, verniz, sangue. Vidros.
Havia milho, trigo, farinha. Havia pão e dedos. Havia rosas vermelhas secas – mutiladas.
Ao lado do moinho, com a enxada, cavei um buraco na terra. Fundo.
Fui buscar as rosas. Nua.
Uma a uma lancei-as para o buraco e com a enxada enterrei-as – com carinho. Muito carinho. Por cima espalhei grãos de milho. O cenário era cinzento: havia pombos.
Vesti-me calmamente. Tirei os poucos e reles tostões que tinhas no bolso. Apaguei as velas. Fechei a porta do moinho.
Havia nuvens e escurecia.
As minhas mãos eram espinhos. Tu eras carne coberta de espinhos.
Fiz-me à estrada e pedi boleia.

- Pena que as rosas morram.
Raquel
Hoje.
Como Raquel. Não como Inês Pereira, não como Castelhano, não como Marta - a mansa, não como anjo redentor que declama Sophia, não como Catarina Eufémia, não como Morgadinha dos Canaviais, não como as dezenas de personagens que já construí. Hoje - apenas como Raquel - celebro o Dia Mundial do Teatro.
E sinto falta de me reinventar. E sinto falta do nervosismo de entrar em cena, ainda que em palcos tão soturnos e tão gastos de ninguém. E sinto falta das palmas. E sinto falta da cortina a fechar.
Eu gosto de Teatro. Eu gosto de fazer Teatro. Eu gosto da gente do Teatro.

Raquel

segunda-feira, 26 de março de 2007

Sola de Couro

Sei os teus passos de cor.
O som - distância concreta dos teus passos - sei decifrar.
Caminhante.
Perdido.
Vagabundo.
Descalço de pés e de sonhos.
Os teus passos são


Música
Raquel

Eu reparei

Primeiro foi o marido. Depois foi o filho. Ela ficou, poupada por uns anos pela morte.
Agora, só, resta ela e o gato.
E senta-se no banco do jardim todos os dias da sua vida em que faz sol. Sol que lhe aquece os ossos. Velha viúva de chinelos pretos que te sentas sozinha no jardim. Todos passam por ti e ninguém repara.
Porque és velha.
Porque és viúva.
Porque és triste.
Porque és inútil.
Porque és sozinha e nada te sobra.
Porque não passas de uma sombra - sombra sentada à espera do pôr-do-sol.

Velha

Velha

Velha

Velha

Inútil

Velha

Nem o gato precisa de ti.

Raquel

terça-feira, 20 de março de 2007

Azul

Na cabeça o véu: branco, bordado. A minha mãe fazia questão de um penteado especial. Tu querias o meu cabelo solto, simples, sem poesia. Deixei o cabelo como tu mais querias.
Nessa noite levaste-me a ver o mar.

Ar. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Ouves a minha respiração - brisa. Escutas o silencio que antecede a minha boca na tua. É melodia o som de me aproximar?
Saliva. Sabes a nicotina, tens sabor a café. Da minha língua prova o chocolate preto do nosso bolo que amargou.
Vultos. Como ondulam os meus cabelos longos? Com quantas formas me desenha a noite? Vês-me inteira?
Carne. O meu vestido. Sentes-lhe a textura? As minhas pernas - carne. O meu vestido – seda. As minhas pernas: seda. O meu vestido – carne. A tua mão no meu vestido. A tua mão nas minhas pernas.
Maresia. Suor – cheiro a algas entranhado nos poros da nossa pele. Sinais do teu corpo no meu que arrefece. Memórias. E o nosso cheiro a embriagar-me a alma.
O nosso filho.

Antes de nascer já o desenhavas, perfeito. Cada dedinho um pormenor. E a boca pequenina e simples. Os olhos – brilhantes. Quando o nosso filho nasceu tu estavas ao meu lado, como em cada momento crucial da minha vida. Estavas ao meu lado e a minha força era proporcional à força do teu desejo de ter este filho. Nosso tesouro. Quantas imagens, quantas fotografias temos nós deste botão de rosa?
Aquela tarde de Verão em que ele adormeceu ao meu colo no jardim e tu foste buscar a tela, marido pintor. Essa é a minha imagem mais bonita.
Pintaste-nos com todas as cores, realçaste o ondular do meu cabelo ao vento. E o nosso bebé perfeito e delicado de encontro a mim. A minha pele. A pele do nosso filho: algodão. Pincel. E o teu sorriso de estrelas a encandear-nos.
Anda, vamos fazer outro filho.
Raquel

domingo, 18 de março de 2007

Restaurante do Desalento

Prato(s) do dia:

Desilusão com salsa e coentros picados confeccionada com fios de azeite, lágrimas e cebola.
Desilusão com especiarias a precisar de uma pitada de sal. E de pimenta, muita pimenta.
Desilusão regada com sumo de limão.
Desilusão acompanhada de dor aos cubinhos a precisar de beijos. E de sal, muito sal.
Desilusão com polpa de tomate e lágrimas.
Desilusão com alho.
Desilusão com ovo e batata frita.
Desilusão a precisar de

Sal

Pimenta

Desilusão a precisar de saliva.
Desilusão às postas com vinho branco a precisar de uma pitada de sal.
Desilusão a precisar da tua boca – pimenta.
Desilusão à lagareiro.
Desilusão à nó na garganta.
Desilusão à aperto no coração.
Desilusão recheada com pimentos sem beijos.
Desilusão simples – sem sabor.
Desilusão a precisar de

Sal

Pimenta

Ti.
Raquel

quarta-feira, 14 de março de 2007

Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.

Eugénio de Andrade

terça-feira, 13 de março de 2007

Quantos degraus para a Eternidade?

São cinco para as três. Estás a chegar. Já oiço ou teus passos escada acima até ao quinto andar, o andar em que te espero. Não gostas de elevadores, nunca gostaste. Dou um jeito ao cabelo que teima em desalinhar, quero estar bonita para ti. Quero ver o teu sorriso grande, luminoso ao entrares com o livro na mão. Aquele que está na última prateleira da estante do escritório e que nunca cheguei a ler. Faço questão que o tragas.
O cabelo desalinha. Tu entras. Estás bonita, estás mais bonita hoje é aquilo que me sabes dizer sempre que entras. Os teus olhos brilham. Tu amas-me tanto. Alguma vez te amei assim?

Apetece-me chorar, apetece-me quebrar estas grilhetas que me prendem a vida, que me afastam de nós. Hoje quero abraçar-te mais que nunca, quero beijar-te, fazer amor contigo. Dá-me a tua mão, toca-me. Não reconheces já o meu corpo?
O meu corpo seco.
És linda.
O meu corpo a apodrecer.
És linda.
O meu corpo em pedaços a ser só resquícios de mim.
És linda
Alguma vez te fiz sentir amado?

Pousa o livro na mesa-de-cabeceira, deixa-o estar aí foi a única coisa que te disse desde que entraste com o livro na mão até a hemorragia começar e a minha boca ser só sangue. Corres e gritas por ajuda.
Não vás, beija-me. Fica comigo, não deixes que te obriguem a sair. Gritas, esfolas-te por ajuda. Não vás, marido meu. Fica, que espeta-se-me no peito a tua ausência.
A enfermeira,

o médico. Tu sabes que eu não vou aguentar outra operação. Diz-lhes. Diz-lhes que me amas, diz-lhes que sou a tua mulher, a mãe do teu filho. Diz-lhes que eu não vou aguentar outra operação. Não deixes que te afastem, tenho tanto para te dizer ainda, mas o sangue impede-me de falar, enrola-se nas palavras.
Marido, penteei-me para ti.
E o sangue jorra em golfadas gritantes. E a porta fecha-se. Estás do outro lado. Não chores.

Lentamente sinto a anestesia a surtir efeito. Sei que me restam apenas alguns instantes, breves minutos para adormecer até não mais acordar. E, no entanto, luto ainda para que me oiças do outro lado da porta. Profiro sangue manchado de palavras. Marido meu.
Amo-te tanto, marido meu. Foi o que ficou por dizer.
Isso, e o livro na mesa intocável.

Quantos degraus para a eternidade?
Cinco andares de elevador.
Raquel

segunda-feira, 12 de março de 2007

Ao lado da minha casa: plátanos.

Céu e plátanos. União crepuscular, penetrante.
Fim da tarde: hora exacta. Último raio de sol que persiste em ficar. Vento seco: folhas que dançam. Porta. Perra. Preta. Porta.
A chaleira. Nas paredes o azulejo azul enegrecido a contar histórias de tempos idos à chaleira ao lume a fumegar. Histórias que o vento trouxe de vidas que um plátano roubou.
Na parede, o relógio. Hora exacta: fim da tarde. O som suspenso sussurrante dos ponteiros. O som suspenso da chaleira, o som sussurante da chaleira, o lume dos ponteiros.
Água. Gotas cansadas, compassadas, a pingar do tanque, que contam histórias de sonhos que um plátano roubou.
E as maçãs, eternas, repousam na fruteira. Ferro forjado fruteira. Vermelhas, tocadas, inteiras. Maçãs com história que contam histórias de amores que um plátano roubou.

Céu e plátanos. União crepuscular, orgásmica.
Tarde do fim: hora fúnebre, indecisa, que me matas. Vento que dança: folhas secas. No lume a chaleira a fumegar. Relógio – horas mortas. A água no tanque a pingar.
E as maçãs: velhas, vis, velhacas maçãs que não cheguei a provar.

Ao lado da minha casa: plátanos.
Uma papoila nasceu.
Raquel

domingo, 11 de março de 2007

o vento. o vento, sabes, traz-me vozes que incendeiam vozes.
o mesmo vento que passa rente à terra da montanha, o vento,
o mesmo vento que lança a noite sobre o telhado da casa.

e o lume, o mesmo lume que iluminava a cara da minha mãe,
o lume, sabes, arde dentro de mim, esse lume é as vozes que
todos esqueceram. esse lume é as vozes dos mortos no cemitério.

os teus murmúrios gritam chamas dentro de mim. não sofro,
sei que o vento é a respiração do mundo. o lume pergunta:
quantas vezes saíste de dentro de mim para me abraçares?

José Luís Peixoto